sexta-feira, 17 de maio de 2013


O ROMANCE DAS ILHAS ENCANTADAS

Jaime Cortesão
 

Em tempos que já lá vão, um bispo nigromante encantou as ilhas do grande mar Oceano. E ninguém mais desde essa hora conseguiu saber ao certo onde ficavam. Porque — ora sabereis — antes do tal encantamento, ainda que rara vela se afoitasse ao largo, jamais as ilhas se furtavam ao olhar dos homens e, de longe em longe, um ou outro navegante as avistava. Sabia-se até que S. Brandão, um Santo navegante, embarcara na Irlanda com 75 monges, que um vento misterioso inchara as velas do navio, e em meio de cantos e músicas de anjos, o levara a uma dessas ilhas, na qual ficava o Paraíso.

Mais tarde, quando os moiros conquistaram aos cristãos as terras que hoje compõem a Espanha e Portugal, sete bispos embarcaram no Porto com os seus fiéis e, navegando para Ocidente durante longo tempo, conseguiram abordar também algumas dessas ilhas. Mas, chegados ali, os bispos queimaram os navios, as velas e tudo o que era indispensável à navegação ao largo, para que a sua gente não pensasse mais em regressar. Foi então que o bispo do Porto, aquele que era nigromante, isto é, que conhecia as artes mágicas, encantou as ilhas para que ninguém mais as abordasse, enquanto os cristãos não tivessem reconquistado aos moiros todas as suas terras. Só assim se julgaram seguros de que os seus inimigos os não fossem ali mesmo perseguir. Depois disto, numa daquelas ilhas, cada bispo com a sua gente construiu urna cidade e por esse motivo lhe chamaram a Ilha das Sete Cidades. E durante alguns séculos os homens não puderam visitar as ilhas do Oceano.

Os moiros, esses, diziam que para Ocidente, havia no mar tamanha escuridão, que era impossível seguir para diante. Além disso, das entranhas da água cor de pez saíam bastas vezes monstros espantosos, dragões e serpentes enormes — que ao escancararem a goela desmedida, exalavam um hálito por tal modo fétido e pestífero, que de pronto matavam a quantos por má ventura o respiravam, e outras vezes com as suas terríveis queixadas partiam os navios pelo meio. Por isso árabes e moiros chamavam Mar Tenebroso ao Oceano. E os marinheiros seguiam com os navios ao longo da costa, de porto a porto, sem se aventurarem ao mar largo, com receio das trevas e dos monstros. Só os cristãos sabiam que nalgumas dessas ilhas do Oceano reinava urna constante Primavera: as árvores estavam sempre cobertas de flores e frutos saborosos; e as aves enchiam de cantos as florestas. Outras ostentavam cidades tão maravilhosas, de tantos palácios e riquezas, que era de oiro mesmo o pó do chão. E os marinheiros que alguma tempestade havia surpreendido e atirado dias e noites sem parar para a infinidade do mar largo, se acaso podiam regressar à sua terra contavam sempre histórias de pasmar. Às vezes — diziam eles — avistavam as ilhas de bordo dos navios. Ao passo que se aproximavam delas, os montes, as baías, os bosques e os belos edifícios, que eles contemplavam com assombro, cresciam a seus olhos pouco a pouco. Chegavam a ver as agulhas das torres e os ramos das árvores mais altas reflectidas nas águas remansosas, a aspirar o perfume das árvores em flor que se espalhava ao largo, e a ouvir os sinos repicar ao longe. Mas, quando deitavam os batéis ao mar para saltar em terra, um vento irresistível os atirava em direcção contrária, um cerrado nevoeiro se interpunha ou a ilha se sumia e apagava no ar como um pouco de fumo.

Acontecia até, às vezes, que sobre o mar de súbito deserto os marinheiros espantados sentiam mais de perto o sopro rescendente dos aromas da terra, ouviam mais ao pé os sinos tocando alegremente e vozes, gritos, gargalhadas, como se a ilha mais os habitantes corressem junto deles, tomados invisíveis.
Assim, com palavras de espanto, eles contavam a visão maravilhosa das ilhas que tinham entrevisto. E logo os outros homens ardiam no desejo de as ver e visitar. Muitos partiam, mas quando, guiados por informações, tentavam encontrá-las, jamais davam com elas. Chamaram-lhes as Ilhas perdidas. Só as mulheres marinhas (ou, por outro nome, as ondinas), que eram filhas do mar e conheciam todos os segredos do Oceano, lhes sabiam o paradeiro certo.
Prendera-as ao encantamento das ilhas o bispo nigromante com as suas artes mágicas. E eram elas que desviavam os navios, quando estavam prestes a abordar as ilhas, que espalhavam no mar os nevoeiros para as esconder e as tornavam invisíveis aos olhos dos marinheiros assombrados. Em boa verdade, o encanto das ilhas encantadas só poderia quebrar-se inteiramente, conforme o desejo do bispo, quando os moiros fossem expulsos de toda a terra de cristãos na Espanha. Mas, se, até lá, algum homem da terra conseguisse casar com uma das tais mulheres marinhas, os seus filhos por herança materna poderiam desencantar algumas das ilhas encantadas.

Ora mais tarde, quando o senhor rei D. Afonso Henriques andava conquistando aos moiros as boas terras portuguesas, houve certo fidalgo, chamado Dom João Froiaz, que habitava no Minho um formoso castelo para as bandas do Mar. Era o fidalgo grande amante de caçadas e correrias pelas selvas. E quanta vez tendo partido para a caça antes do amanhecer, só noite feita regressava ao palácio!

Uma bela manhã, Dom João Froiaz, ainda o Sol se não erguera, partiu com os seus monteiros a caçar. Encaminhara-se o fidalgo para a beira-mar a urna cerrada selva só dele conhecida e onde, num apertado vale entre dois montes, se despenhava uma ribeira fria. Mais que urna vez, dobrada a encosta dum ou doutro lado com cautela, conseguira apanhar de surpresa veado ou corça, que viera matar a sede às águas frescas. O sol nascera enfim. Luzia ao longe o mar. Mas no fundo dos vales que iam dar à costa, grandes rolos de névoa desprendiam se a custo e pouco a pouco dos braços verdes do arvoredo. Duas boas horas correra o cavaleiro pela brenha orvalhada e nem sombra de caça aparecera. Dom .João Froiaz lembrou-se então de ir àquela garganta entre os dois montes, por onde as águas desciam até unir-se ao mar. É certo, pensava ele, que só à tarde usavam os veados, quando fatigados das corridas ou dos dias mais quentes, ir lá matar a sede. Mas, pois, até àquela hora, por onde andara a caça não surgira, resolveu-se a procurá-la nas abas da ribeira.

Mais devagar! Calai os cães! Tende-vos na descida! — dizia o cavaleiro para os homens, mal ouviu no silêncio da selva chalrar as águas que iam de pedra em pedra. — Talvez que na margem da ribeira esteja bebendo algum veado!

Cautelosos e apoiando-se aos troncos, os homens desciam pela encosta. Mas apenas se ouvia mais esperta e fresca a voz das águas ou ramo solto que tombava. Já o cavaleiro e os seus homens, tendo chegado junto à beira-mar, desanimavam, Mas eis que um deles, o que ia à frente, estaca, e voltando atrás transtornado pelo espanto, exclama com voz surda:

Chus! Calai-vos! Senhor; estranha caça tendes!

Lá no fundo, a trinta passos do mar, que não mais, via-se, de meio corpo na ribeira, que ali se misturava com as águas salgadas, e a cabeça sobre as plantas da margem, uma mulher deitada. Era uma mulher marinha, uma filha do Mar, que dormindo se esquecera no sossego doce da manhã. Já Dom Froiaz caladamente erguera o braço, dando sinal aos homens para fazerem alto. Depois deitou-se do cavalo abaixo. E, pé ante pé, com as maiores cautelas, dirigiu-se ao lugar onde a mulher marinha adormecera. Eis que, a meio caminho, um ramo estalou sob os seus pés. A mulher acordou; olhou à volta; e mal que viu o cavaleiro levantou-se de salto e abalou de corrida em direcção ao mar. Mas as mulheres marinhas correm melhor nas ondas do que sobre o chão. E Dom Froiaz, mais ligeiro que os gamos da mata, foi-lhe no encalço e já quando ela molhava os pés nas ondas conseguiu deitar-lhe os braços e arrastá-la consigo para terra. De cabeleira solta e mal coberta com o seu vestido de algas, a filha do Mar esbracejava inutilmente entre as possantes mãos de Dom Froiaz. Mas - coisa estranha! - nem palavra de queixa se lhe ouvia!
Por fim deixara de lutar. Contentes, os monteiros riam. Dom Froiaz subiu para o cavalo, e, com o auxílio dos seus homens, ergueu-a sobre a sela. E, sem tardar, maravilhado e satisfeito com tão nova caça, abalou direito a seu castelo.

Passado tempo, Dom Froiaz casou com a filha do Mar, depois que esta se baptizou com o nome de Marinha. E com receio de que algum dia a vencesse a tentação do Mar e ela fugisse, levou-a o cavaleiro para longe, para certo desvão escondido na serra, onde tinha outro castelo. Mas D. Marinha, em seu palácio, ainda que o marido a rodeasse de cuidados, tinha dias em que os olhos se lhe tornavam dum verde muito escuro como as águas do Oceano, quando se aproxima a tempestade. E então dava suspiros fundos. Eram saudades que sentia do Mar.

 
 

Em tais ocasiões só parecia ter algum alívio passando horas inteiras nos pinhais que rodeavam o castelo. É que os pinhais, quando por cima deles passa o vento, são como os búzios: escuta-se lá dentro a voz do Mar. Mas fora dos suspiros que soltava em tais momentos, nem uma palavra se lhe ouvira. E debalde Dom João Froiaz tentara todos os meios para que falasse. No entretanto o casal já tinha filhos. E a um mais que aos outros se afeiçoou D. Marinha, talvez porque era de génio inquieto e bravo, e assim mais parecido com seu avô - o Oceano. Tantos extremos não deixaram de ser considerados pelo cavaleiro. E, no desejo de a ouvir falar, imaginou um novo ardil com que a fizesse destravar a língua. Mandou acender em seus paços uma grande fogueira. E, quando a mãe vinha de fora, trazendo ao colo aquele filho que mais que tudo amava, o cavaleiro, fingindo grande cólera, correu direito a ela, e arrancando-lho por força virou-se para o fogo, com o jeito arrebatado de quem o quer arremessar ao lume. E um espantoso caso se viu naquela hora. D. Marinha ergueu os braços, correu, levou as mãos ao peito e, no esforço terrível de salvar o filho, soltou um grande e rouco brado, como se fora dalgum monstro marinho. Depois deu outro brado mais claro e outro ainda, até que se lhe ouviram, cortadas de aflição, as primeiras palavras:



Ai! o meu filho!

Dom Froiaz, cheio de alegria, pôs-lhe o filho ao colo, e animando-a com palavras carinhosas, logo lhe disse como tudo fora amor e fingimento para que a fala lhe nascesse. E, desde então, até ao fim da sua vida falou D. Marinha.

Quebrara-se enfim o encanto da mulher marinha. Desde que, pela primeira vez, por amor de mãe se lhe soltara a língua, tomou-se inteiramente humana. Mas mal perdera um, logo ficara para sempre presa a outro encanto, que tanto Dom Froiaz como D. Marinha mais do que nunca se sentiram encantados um do outro. De sorte que, tendo ela vencido a pouco e pouco a tentação das águas, o cavaleiro resolveu-se enfim a regressar ao seu castelo à beira-mar. E quantas vezes, depois que ali chegou, olhando as ondas, D. Marinha, perturbada até o fundo da alma, sentiu desejos de partir de novo! Mas logo o amor de mãe e de mulher vencia a dura tentação. Um dia, tão segura de si mesma se sentiu que se voltou de novo para o Mar. Na praia, Dom João Froiaz via-a com pasmo boiar, correr, sumir-se, aparecer, cortando as ondas com ligeireza incrível. E um momento que a viu afastar-se da praia e de arrancada entrar pelo mar dentro, corno o barco que soltou a vela e abala para o largo, sofreu o cavaleiro inquietações mortais, no receio de que ela fugisse.
Mas dentro em pouco D. Marinha regressava. O encanto fora vencido para sempre.
 
 

E, desde então, quando vinham do castelo até a beira-mar, e que D. Marinha brincava sobre as ondas, não mais o cavaleiro sentiu receio ou dúvida.
E começou para seus filhos uma vida de encanto e maravilha Manhãs, tardes inteiras, os pequenos Marinhos se ficavam na praia. Uma atracção irresistível os prendia às águas. Entravam pelas grutas e cavernas que se abrem nas costas escamadas E os mais velhos eram como golfinhos a nadar. E o mar que os conhecia, todos os dias com cuidados de Avô, arrancava do fundo coisas maravilhosas para divertir os seus netinhos. Hoje, eram búzios enormes, que eles a muito custo conseguiam arrastar e levar para o castelo. Amanhã, as várias conchas de moluscos, de finas cores e feitios estranhos: aquelas que têm o nome e a forma duma harpa; as que imitam a mitra que os bispos trazem na cabeça e como tal são nomeadas; o fuso longo, que lembra um fuso de fiar: O búzio turriculado, chamado assim por ter a forma duma torre; e o murex de espinha fina, todo eriçado de agulhas delicadas.

Outras vezes, onda a onda, vinham ter à praia as espécies mais raras de vieiras, desde as pequeninas que mal se vêem sobre a areia, até aquelas que lembram grandes leques, de varetas abertas, e que são cor de sangue, cor-de-rosa, cor de oiro e mel. Chamavam-lhes São Tiagos nesse tempo e ainda hoje em algumas povoações marítimas do Norte, porque os romeiros quando partiam nas peregrinações a S. Tiago de Compostela na Galiza, as levavam como distintivo no chapéu. Não faltavam também aquelas lindas conchas redondas e estriadas a que chamam patelas, quase sempre de cor verde e muitas vezes estreladas.
 
 
 E tão-pouco os ramos finos de coral vermelho, as estrelas do mar de várias cores movendo os grandes braços, as madréporas, os ouriços e os corações da Índia.
E até, de quando em quando, o Mar tirava das entranhas as jóias mais belas que possui e vinham ter à praia, presas ainda à concha, pérolas enormes, redondas e macias, como lágrimas de luar e céu amanhecente.
 

Ora um dia sucedeu que Dom Froiaz viera sozinho com seus filhos para a praia; e um deles, o mais mocinho, que mal se erguia ainda sobre as pernas, conseguiu, por descuido do pai, trepar a um recife que entrava pelo mar, e seguir por ele até a ponta. De súbito veio uma onda que o levou e, depois de o prender naquele redemoinho em que elas se desfazem, atirou o menino para o largo. Na praia, Dom Froiaz corria como louco, bradando de aflição e entrava já vestido pelas águas, posto que nadar não soubesse, quando o Mar, como por encanto, sossegou e alevantou-se em todo ele uma onda enorme, que corria para a terra e sobre a qual a criança sem temor boiava. E, na crista da onda que o sustinha com delicadeza carinhosa, Dom Froiaz com grande espanto viu as mãos do Avô-Oceano erguer, inclinar e depor na areia o pequeno Marinho com tão suave jeito corno as mães, quando deitam um filho adormecido sobre o berço.
 

Nesse tempo a costa Portuguesa era mais retalhada do que é hoje pelo Mar. Os rios, como o Lima, o Douro, o Vouga, o Mondego, o Tejo, e a ribeira de Portimão tinham estuários mais profundos por onde o Mar entrava, carregado de peixes, de sal e maresia, até o interior das terras. Onde fervilha hoje a população de pescadores da Nazaré, o Mar cobria a praia. Só o promontório do Sítio avançava o agudo espigão sobre o abismo, mais profundo naquele tempo. Foi mais tarde que a Virgem salvou a vida de D. Fuas Roupinho, primeiro almirante de Portugal, que era do sangue dos Marinhos, suspendendo no ar e sobre as águas as patas dianteiras do cavalo em que montava. Mais ao Sul, onde hoje se arredonda como um anel a concha de São Martinho, um grande golfo entrava pela terra dentro até Alfeizerão, povoada por mouros. Mais adiante, A Lagoa de Óbidos invadia também a terra profundamente, até a povoação que tomou aquele nome dos romanos. A porção de costa, onde hoje assenta Peniche e o Cabo Carvoeiro, formava ilha. Eram mais profundas as furnas do Cabo e mais alterosos e fantásticos os seus penhascos. Na Berlenga, maior que hoje e que mergulhava no Mar, translúcida como uma safira, havia um castelo e um palácio árabes maravilhosos. Os Normandos, que ainda desciam dos países do Norte nos seus grandes barcos, com proa e popa em meia-lua, como as xávegas e os saveiros de hoje, penetravam nos estuários dos rios, ora em som de comércio, ora em guerra de piratas. Às vezes, a meio do combate, abandonavam alguns dos barcos mais pequenos nos recantos solitários da costa. E os Marinhos, que já eram rapazes, se acontecia encontrar um desses barcos Normandos, entravam neles, tomavam os remos ou içavam a vela e visitavam as baías, os promontórios, as lagoas e as ilhas, ao longo da costa. Viram no Mar boiar, como grandes jangadas prestes a naufragar, as mantas de sargaço, cor verde-amarelo de azeitona.
 
 
 E acostumaram-se a conhecer as aves que vivem nos terrenos húmidos junto das lagoas, altas de perna e longas de pescoço — as cegonhas, as garças e as abibes; as que se escondem entre os canaviais, os funchos e as ervas altas, à beira dos pântanos e nadam tanto como voam - os mergulhões, os patos bravos e as galinhas de água; os pássaros mais velozes, que vivem correndo em bandos na vasa das marés - os maçaricos, as tarambolas e os borrelhos, tão rápidos que alguns se chamam curre-curres; os que vivem nos rochedos junto da costa, negros como eles — as andorinhas do mar e os corvos marinhos; as gaivinas e gaivotas que voam sobre as ondas, com grandes asas lentas, mas entram muito pela terra dentro; ou as que vivem no mar e raras vezes aparecem na costa, como as almas-de-mestre, os calcamares e as pardelas. Se acontecia visitarem os estuários dos rios mais distantes, para o Sul, viam com pasmo as mais belas e extraordinárias entre as aves da beira de água — os flamingos. Brancos de neve, com as asas rosadas por baixo e mais ligeiramente por cima, pernas altíssimas e finas, pescoço longo e extremamente móvel, quando largavam para longe davam a singularíssima impressão de que passava no ar um voo de labaredas. E quando voltavam ao castelo, já tarde e em noites de luar, viam às vezes cruzar no céu os bandos de aves migradouras que partiam para os países distantes. E, mais que todos, os maravilhava o voo dos patos bravos, negros e formados em V, desenhado a nanquim sobre a neve da lua.

O certo é que todos os filhos de Dom Froiaz e de D. Marinha, quanto mais cresciam, mais neles se mostrava que eram netos do Mar. Já de pequenos (dizia o povo que habitava perto do castelo), pelos longos serões de Inverno, os Marinhos punham o ouvido à escuta nos grandes búzios que tinham da praia acarretado e escutavam as histórias que o Mar, para entretê-los, de lá de dentro lhes contava. Em dias de tempestade, quando as águas rugiam, viam-nos muitas vezes descer à costa e iam tão perto delas que outros afirmavam que o Mar os conhecia e as ondas lhes falavam. Fosse lá como fosse, ninguém, como os Marinhos, conhecia os segredos do Oceano. Em terra alguma, fora possível encontrar quem sobre as ondas guiasse com mais destreza e a salvo, numa longa derrota, a vela duma barca. E em breve tanta fama ganharam que eram tidos e havidos pelos melhores mareantes do seu tempo.

Ora um dos Marinhos, o mais novo, a quem chamavam o Machico, ouvira muitas vezes falar das ilhas encantadas e muitos marinheiros lhe contavam que as tinham conseguido ver mas jamais abordar. E o Marinho, tendo sabido que as ilhas eram tão formosas que numa delas encontrara S. Brandão o Paraíso, concebeu dentro de si um ardente desejo de ir à busca delas. E havendo carregado a sua boa barca de mantimentos e de aparelhos necessários, o Machico partiu. Mais não seriam andados que quatro ou cinco dias, quando, depois de ter seguido em certa volta que lhe haviam ensinado, uma bela manhã, ele e os seus homens viram no horizonte nuvens ou névoas que pousavam sobre o mar, sinal certo de alguma ilha ou terra próxima. Cheio de alvoroço, o Machico seguiu naquela direcção. E ao passo que se aproximava, vinham aos seus ouvidos estrondos furiosos, como se penhas ou cataratas invisíveis caíssem sobre o mar ou as ondas se atirassem com ímpeto de encontro a alguma escarpa alcantilada. Mas a névoa à sua frente tornara-se tão densa que era impossível lobrigar sequer a ponta duma rocha. E agora que a barca estava perto, ouviam-se distintamente tantos e tão violentos baques e ribombos que os marinheiros do Machico, pálidos de espanto, faziam o sinal da cruz, e já uns para os outros murmuravam que ali era a entrada do Inferno. E tamanho temor entrou com eles que à uma gritaram para o capitão:

Senhor, façamos vela para Portugal, ou nos vamos perder todos!

Mas o Machico bradou-lhes com palavras de valoroso incitamento:

Avante! Não temais! São as ondas a bater na costa. Estamos quase à vista dalguma das ilhas encantadas!

De súbito, a névoa começou a descerrar-se como se invisíveis mãos apartassem uma cortina para os lados.
 
 E viu-se um espectáculo tão belo que pelos marinheiros passou um calafrio e alguns ajoelharam de pasmo sobre as tábuas da barca. À sua frente alevantavam-se rochas alterosas a prumo sobre as ondas; selvas de árvores frondosíssimas vinham de escarpa a baixo até a água; e para além cerros de macia curva desdobravam-se a perder de vista! Era uma das ilhas encantadas que se erguia para o Céu, corno um altar de serras e arvoredos entornando ondas de cantos, de cores e de perfumes sobre o Mar! O Machico mais os seus mareantes cuidaram logo de saltar em terra.
 
 
Estavam numa ilha onde o ar era morno e suavíssimo. Tão cerradas se estendiam as florestas sobre a ilha, que só a muito custo conseguiam romper por dentro delas. Das árvores pendiam flores de infinitas qualidades. E dentro em pouco aqueles homens saciavam a fome na polpa saborosa de frutos nunca vistos. E em tudo à sua volta, desde os alcantis de rocha viva, que semelhavam monstros, palácios ou torres e pontes levadiças de castelos, erguidos sobre a beira-mar, até aos recantos das florestas virgens, tão rescendentes e viçosas, como enormes cavernas de ramos e de flores, eles não se cansavam de pôr olhos dilatados de espanto. Mas o que mais assombro lhes causou foi ver que quantos animais habitavam a ilha não mostravam o menor receio daqueles novos habitantes. As focas, nunca por eles vistas, e às quais puseram o nome de lobos marinhos, com que por muito tempo se chamaram, deixavam-se ficar, se eles se aproximavam, como se nada tivessem que temer. E as aves, essas, cheias de confiança, deixavam-se colher e vinham poisar-lhes sobre as mãos ou cantar-lhes sobre os ombros. Era tamanho o esplendor da ilha, a suavidade dos ares e a inocência natural dos bichos, que o Machico se convenceu Ter aportado àquele mesmo lugar do Paraíso, a que outrora S. Brandão com os seus monges conseguira abordar. E porque a terra era toda coberta de florestas, como ele nunca vira, chamou-lhe a ilha da Madeira.

Mais tarde, um filho de D. João I, o qual se chamou o Infante D. Henrique, e a quem, quando era moço, o Machico já muito velhinho contara a história da ilha que ele achara, pôs na sua vontade descobrir as outras ilhas encantadas, que havia no grande mar Oceano. E tendo reunido os melhores astrólogos que havia nas Espanhas, os quais conheciam também as artes mágicas e entendiam o futuro pelo movimento das estrelas, conseguiu saber o segredo das ilhas encantadas e o modo de as desencantar.

Já neste tempo eram muitos os Marinhos e, por serem descendentes do Oceano, tinham aprendido a guiar-se, de dia ou de noite, ao largo, pela posição do Sol e das estrelas. Sabiam, como ninguém, aproveitar ou evitar as correntes do Mar e estender a cada vento as velas para andar sobre as águas. E como então, além das galés, os navios de guerra desse tempo, as naus que empregavam no comércio e nas viagens eram pesadas embarcações com a vela redonda, construíram eles navios mais ligeiros, aos quais chamaram caravelas e ao contrário das naus tinham as velas inclinadas e esguias como asas de gaivotas. Os Marinhos tinham-se tomado assim os melhores marinheiros que havia em todo o Mundo.
O Infante D. Henrique então fundou uma vila no Cabo de S. Vicente, que está no extremo sul de Portugal e juntou aí os Marinhos, mais marinheiros que havia em todo o Reino. Depois de juntos, aprenderam uns com os outros e com os astrólogos do Infante e tomaram-se invencíveis na arte de domar as ondas. E da costa algarvia partiram nas suas caravelas a descobrir os segredos das terras e dos mares.
 
 

Ora uma das caravelas do Infante, tendo partido para o Ocidente e navegando muitos dias sem parar, conseguiu, não obstante os ventos que se opunham e os nevoeiros que lhes escondiam o caminho, aportar a outra das ilhas encantadas e, por sinal, a que fora chamada, em memória dos sete bispos e das cidades que fundaram — a ilha das Sete Cidades. Muito se espantaram os marinheiros portugueses dando com uma ilha povoada e ao desembarcar numa bela cidade cheia de palácios e riquezas. E não menos pasmavam os habitantes dessas ilhas ao ver pela primeira vez, passados alguns séculos, outros homens aportar à sua terra. Não cansavam de se admirarem uns aos outros. E os da ilha, para conhecer se eram cristãos os navegantes, cuidaram de conduzir alguns a uma igreja. E quando viram que também eles rezavam e adoravam a Cruz, deram grandes mostras de alegria e pediram-lhes que não partissem enquanto não viesse o senhor daquela terra que se tinha ausentado, mas que por certo folgaria de vê-los e fazer-lhes honras e presentes. Mas o capitão e os marinheiros da caravela temeram-se que os habitantes da ilha para conservar o seu mistério os prendessem e lhes queimassem o navio. E, dando às velas sem demora, partiram para Portugal e foram-se contar o seu descobrimento a D. Henrique, o qual ficou deveras satisfeito e muito mais, depois de ver que parte da areia colhida pelos marinheiros nessa ilha era de oiro fino. Alvoroçado com tão boas novas, o Infante encomendou-lhes muito que voltassem lá, prometendo-lhes armar outros navios com mais gente, para visitarem a ilha sem temor e trazer dela mais certa informação. Eles assim fizeram e acompanhados de outras caravelas dirigiram-se à ilha. Mas, quando ali chegaram e a abordaram, por mais que procurassem já não havia nem cidade, nem palácios, nem igreja, nem homens! Só a ilha ali permanecia formosa como sempre; e no lugar onde outrora tinham sido as cidades no extremo ocidental, por mais oculto aos navegantes, havia agora apenas, entre as altas montanhas, um abismo enorme e ao fundo um grande lago! E os Marinhos continuaram a descobrir e a desencantar as ilhas.
 

E ainda hoje naquela ilha, que se chama agora S. Miguel, existe esse lugar maravilhoso e com aquele antigo nome — as Sete Cidades. O grande abismo, que parece uma enorme cratera de vulcão, rodeia-se a toda a volta duma cinta de cerros, que medem quase 900 metros de altitude. As suas abas estão revestidas, de alto a baixo, duma vegetação riquíssima. E lá no fundo, os olhos contemplam com assombro uma lagoa de alguns quilómetros de extensão, metade azul, metade verde, e em parte coalhada com as folhas e as flores dos nenúfares. Afirmam aqueles, que algum dia viram lá do alto esse espectáculo e desceram depois pelos carreiros até o lago, que não há em todo o Mundo tão maravilhoso panorama. E bem se mostra por aquela estranha formosura que foram noutro tempo ali as Ilhas Encantadas.

Também na outra ilha, a da Madeira, há um lugar a que chamam o Machico, do nome do seu descobridor, e outro Câmara de Lobos, pelo grande número de lobos marinhos que ali viviam; e ainda hoje nessa ilha reina uma Primavera eterna, como no tempo em que S. Brandão a visitou.

E por fim, meus amigos, vos direi: Marinhos, foram também Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e os irmãos Corte-Reais que conseguiram arrancar aos mares os seus maiores segredos. Mas, só quando os cristãos conquistaram o reino de Granada, última parte das Espanhas, que estava em mãos de moiros, então de todo se desencantaram as terras, as ilhas e os mares, que, havia tantos séculos, estavam escondidas no grande mar Oceano.











Jaime Cortesão
Nome: Jaime Zuzarte CortesãoNascimento: 29-4-1884, Ançã, CantanhedeMorte: 14-8-1960, Lisboa


De seu nome completo Jaime Zuzarte Cortesão, nasceu em 1884 perto de Cantanhede, mas muito jovem a sua família se transferiu para próximo de Coimbra, onde iniciou os estudos. A sua vida de estudante universitário foi uma sucessão de experiências depressa abandonadas (passou por Grego, Direito e Belas-Artes) antes de se fixar em Medicina, que terminaria em Lisboa com uma tese que espelha já a sua multiplicidade de interesses (A Arte e a Medicina - Antero de Quental e Sousa Martins). A medicina não era, porém, a sua paixão; exerceu-a sem grande entusiasmo, e cedo se entregou a outras atividades, nomeadamente ao ensino (nos liceus e mais tarde nas Universidades Populares criadas durante a República), à literatura e à política. As suas tendências literárias e o seu interesse pela política, que sempre andaram a par, vincariam toda a sua vida de adulto em Portugal e no estrangeiro. Escritor (poeta, dramaturgo, contista, memorialista), colaborou na concretização de diversas publicações que marcaram a vida intelectual do primeiro quartel do nosso século (A Águia, Renascença, Seara Nova). As suas atividades políticas, iniciadas ainda durante a Monarquia, revestiram-se de grande riqueza e diversidade: participou ativamente na conspiração republicana que iria conduzir ao 5 de outubro de 1910, nas movimentações políticas conducentes à queda da ditadura de Pimenta de Castro em 1915, e opôs-se tanto ao sidonismo como ao salazarismo, o que lhe valeu por diversas vezes a prisão e finalmente o exílio; convidado para Ministro da Instrução, não aceitou o convite, mas foi deputado e, apesar da imunidade que essa qualidade lhe dava, ofereceu-se como voluntário para as forças expedicionárias na Primeira Guerra Mundial, assim dando consistência à sua posição política favorável à participação de Portugal no conflito; filiado na Maçonaria, acabou por se desvincular daquela organização ao cabo de vários anos de participação irregular nas suas atividades. Opositor do fascismo, combateu-o mesmo antes do 28 de maio, procurando, pela propaganda, evitar o seu acesso ao poder, sendo forçado a exilar-se após o golpe que instituiu a Ditadura Militar. O exílio levá-lo-ia a França e a Espanha, onde simultaneamente conspirava e efetuava as investigações históricas que já então constituíam o cerne das suas preocupações intelectuais. A queda da República Espanhola (1939) força-o a abandonar o país vizinho, fixando-se em França, de onde escapa novamente, desta vez regressando a Portugal, quando aquele país sofre a invasão nazi. Preso novamente, novamente se exila, desta vez para o Brasil, onde foi docente, jornalista e conferencista, destacando-se ainda como investigador da História de Portugal e da sua expansão e da História da formação do Brasil. No desenvolvimento desta fértil atividade intelectual, produz um vasto conjunto de obras inovadoras de grande fôlego, que lhe granjeiam reconhecimento internacional, tanto pelo rigor da investigação e pela clareza da exposição como pela solidez das teses defendidas. No fim da sua vida, visitou regularmente Portugal, tendo regressado definitivamente apenas em 1957. A sua avançada idade não lhe permitiu aceitar a proposta da Oposição ao Estado Novo de se candidatar à Presidência da República, em 1958, mas não o impediu de continuar a lutar contra o regime, tendo sido um dos autores de um Programa para a Democratização da República que só viria a público alguns meses depois do seu falecimento em 1960.


Bibliografia: Eça de Queirós e a Questão Social, Lisboa, 1949; A Fundação de São Paulo, Capital Geográfica do Brasil, Rio de Janeiro, 1955; Brasil, Barcelona, 1956; História do Brasil nos Velhos Mapas, Rio de Janeiro, 1965; O Humanismo Universalista dos Portugueses: a Síntese Histórica e Literária, Lisboa, 1965; A Política de Sigilo nos Descobrimentos: nos Tempos do Infante D. Henrique e de D. João II, Lisboa, 1960; Os Factores Democráticos na Formação da Nacionalidade, Lisboa, 1964; Expansão dos Portugueses no Período Henriquino, Lisboa, 1965; Os Descobrimentos Pré-Colombinos dos Portugueses, Lisboa, 1966; O Ultramar Português Depois da Restauração, Lisboa, 1971; História dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 197-; Os Descobrimentos Portugueses, 3 vols., Lisboa, 1980; A Expansão dos Portugueses na História da Civilização, Lisboa, 1983; Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses e Outros Ensaios, Lisboa, 1984; Portugal, a Terra e o Homem, Lisboa, 1987; História da Expansão Portuguesa, Lisboa, 1993; A Expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil, Lisboa, 1994; Memórias da Grande Guerra: 1916-1919, Porto, 1919; Treze Cartas de Cativeiro e Exílio, Lisboa, 1987; Egas Moniz, Porto, 1918; O Infante de Sagres, drama épico, Porto, 1916; Adão e Eva, Lisboa, 1921; Divina Voluptuosidade, Poemas em Redondilhas, Lisboa, 1910; A Morte da Águia, Lisboa, 1910; Esta História é para os Anjos, Porto, 1912; Glória Humilde, Porto, 1914; A Sinfonia da Tarde, Porto, 1912; Daquem e Dalem Morte, Porto, 1913; Missa da Meia-Noite e Outros Poemas, Lisboa, 1940; Parábola Francisca, Lisboa, 1953; Poesias Escolhidas, Lisboa, 1960; Divina Voluptuosidade: Missa da Meia-Noite e Outros Poemas, Lisboa, 1968; Poesias, Lisboa, 1967-68; Romance das Ilhas Encantadas, Lisboa, 1979



Jaime Cortesão. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult. 2011-08-24]. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$jaime-cortesao>.

quinta-feira, 16 de maio de 2013





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quarta-feira, 15 de maio de 2013

Escritor do Mês - Maio


 Luísa Ducla Soares

Biografia
                   
Nasceu em Lisboa a 20 de Julho de 1939, onde se licenciou em Filologia Germânica.
O seu primeiro livro de poesia data de 1970 e intitula-se Contrato.
Tem-se dedicado como estudiosa e autora à literatura infanto-juvenil.
Publicou 45 obras infanto-juvenis.
Recebeu o "Prémio Calouste Gulbenkian para o melhor livro de literatura infantil no biénio 1984-1985" e o "Grande Prémio Calouste Gulbenkian" pelo conjunto da sua obra em 1996.
Colaborou na página infantil do Diário Popular e na revista Rua Sésamo.
As suas obras encontram-se traduzidas em diversos línguas, nomeadamente francês, catalão, basco e galego. 



 

Preparação para Exames Nacionais

Encontra-se disponível na Biblioteca Exames Nacionais de anos anteriores para tu resolveres.

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